Quanto vale um livro presente ?
- Diana Exenberger Finkler
- 3 de set.
- 6 min de leitura

Recebi de presente do amigo e criador do Red Umbrella o livro "A Universidade em Questão", escrito por Georges Gusdorf.
O presente chegou em boa hora, justamente às vésperas de ministrar um curso de inovação em uma renomada universidade brasileira.
O livro aborda, de forma extraordinária, simples e direta, o que é a essência da universidade. Ao longo deste texto, são apresentados alguns trechos extraídos do livro que são importantes de compartilhar.
"A espécie humana, na sua luta pela vida, não luta apenas para sobreviver. Sua vocação própria é a de afirmar, para além das necessidades da natureza, a exigência da cultura."
Para quem convive e trabalha com diversas universidades, não é difícil afirmar que tal essência se perdeu, e é preciso ter a coragem de assumir que o propósito real das universidades tem ficado para trás ao longo dos últimos anos, não só no Brasil, mas no mundo, e em especial na França. O autor relata o auge da Universidade de Paris e sua decadência.
"A universidade tem por função transmitir a alta cultura por meio do ensino e desenvolvê-la por meio da pesquisa. Mas ocorre que ela também representa, no âmbito da nação, o papel de um organismo de seleção e de ascensão social, na medida em que garante a formação profissional de uma parte dos quadros administrativos e técnicos do país, e determina o acesso a certas carreiras liberais."
"A cultura é um dos tesouros mais preciosos da humanidade, mas um tesouro não pode ser compartilhado como se fosse um estoque de chocolate ou de notas de dinheiro. As instituições sociais não entregam a cultura pronta; elas apenas oferecem a possibilidade de acessá-la, às custas de um longo e penoso trabalho. O direito à cultura só tem sentido e valor em função de uma vontade de cultura, de um esforço paciente consigo mesmo. É preciso, então, que os interessados trabalhem duro nisso e, antes de tudo, que queiram."
"O operário fica livre de sua tarefa a partir do momento em que ela está concluída; a atividade dos estudos não para jamais. Ela esgota o organismo da mesma maneira, e talvez até mais, do que o trabalho físico. O privilégio do intelectual, se é que existe algum, é um privilégio de humanidade; mas esse privilégio não é dado e recebido, ele deve ser arduamente conquistado pelo próprio interessado, e mantido dia após dia, apesar do fracasso, da dúvida e do desespero. O motorista de ônibus, o empregado, o vendedor, podem estar satisfeitos consigo mesmos; o intelectual, jamais completamente."
O livro também discute a relação professor-aluno.

Fala-se tanto em política, polaridade, em saúde, em fome e em uma lista infinita de problemas, mas não se fala na solução de tais problemas, relacionada ao resgate do papel das universidades em nossa sociedade.
"Sempre haverá alguém para sustentar que a universidade não serve para nada e, em certa medida, esse julgamento está certo. A universidade não está aqui para servir a algo, mas tão somente para servir. Por sua simples presença, e por mais medíocres que sejam aqueles que a dirigem, ela faz os homens se lembrarem da ordem da humanidade."
Claro, isso depende de pensadores, e é óbvio que, sem o resgate da verdadeira universidade, tornar-se um pensador hoje é muito mais "sorte" do que oportunidade real.
Sem o resgate da verdadeira relação entre professor e aluno, acreditar em mudança não passa de uma grande ilusão.
Essa reflexão encontra eco em debates atuais sobre o papel da universidade diante das demandas da sociedade contemporânea. É nesse ponto que se insere o case de colaboração a seguir, que amplia a crítica à formação acadêmica e aponta para a necessidade de repensar a relação entre ciência, inovação e o futuro dos pesquisadores.
Colaboração: A Transição de Acadêmico a Empreendedor
A jornada de um pesquisador no Brasil é marcada por paradoxos que se revelam não apenas nas bancas avaliadoras ou nos artigos científicos, mas no modo como a universidade define os papéis que seus alunos e professores devem ocupar. Ao decidir atravessar a fronteira entre a academia e o mercado, surgem questões inevitáveis: até que ponto nossas instituições estão preparadas para formar empreendedores do conhecimento sem, com isso, descaracterizar a vocação essencial da ciência? Como conciliar a lógica das bolsas de pesquisa, ainda permeadas por regras rígidas, com a urgência de transformar ideias em soluções concretas para a sociedade?
A profissão de pesquisador sequer existe formalmente e as bolsas, ainda que indispensáveis, muitas vezes restringem mais do que libertam. Exige-se experiência docente para concursos, mas, ao mesmo tempo, proíbe-se que o bolsista atue plenamente fora da universidade. Essa contradição expõe uma lacuna, mas também abre espaço para reformas.
O modelo da Hélice Tríplice (Etzkowitz & Leydesdorff, 2000) oferece uma lente útil para pensar esse equilíbrio: universidade, indústria e governo não ocupam papéis opostos, mas complementares. A inovação nasce justamente da interação entre esses três polos, que se sobrepõem e se alimentam mutuamente. No Brasil, o Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação (Lei 13.243/2016), regulamentado em 2018, buscou reduzir barreiras burocráticas e incentivar parcerias. Mais recentemente, o próprio CNPq passou a flexibilizar algumas normas de suas bolsas, admitindo que bolsistas possam dedicar parte de seu tempo a atividades remuneradas ou a projetos de inovação.
Mas essa abertura só se concretiza quando há concordância entre as três partes diretamente envolvidas: o aluno, o orientador e o programa de pós-graduação. Nesse ponto, o papel do professor-orientador é central. Ele não deve ser apenas o guardião das regras, mas alguém que reconhece que orientar é também abrir caminhos, assumir riscos calculados e apoiar o desenvolvimento integral do estudante. Quando o professor transforma a autorização em um gesto de confiança pedagógica, a flexibilização deixa de ser apenas uma norma formal e se torna uma oportunidade concreta. O aluno assume sua responsabilidade de manter a qualidade da pesquisa; o programa garante o enquadramento institucional; e o orientador cumpre seu papel mais profundo: guiar não apenas o trabalho científico, mas a trajetória de quem aprende a transformar conhecimento em futuro.
Ao longo de um doutorado, quatro anos de investigação poderiam, em muitos casos, resultar em startups científicas, patentes ou soluções tecnológicas de alto impacto. Mas isso não significa que toda pesquisa deva se transformar em negócio. A ciência também cumpre um papel insubstituível na produção de conhecimento de longo prazo, cujos efeitos podem ser sentidos apenas décadas depois. O ponto não é substituir uma visão por outra, mas reconhecer que ciência e empreendedorismo podem coexistir como dimensões complementares do mesmo percurso.
A literatura mostra que essa transição já está em curso. Domingues (2012) analisou como o empreendedorismo começa a se infiltrar nas práticas científicas brasileiras, especialmente em incubadoras e núcleos de inovação. Relatórios da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) indicam que países que conseguem articular universidades, empresas e governo são os que mais rapidamente convertem conhecimento em inovação, sem abrir mão da pesquisa básica. E a MIT Sloan Management Review Brasil (2021) descreveu a emergência de uma geração de cientistas-empreendedores que não deixam de ser pesquisadores, mas expandem sua atuação ao levar o laboratório para dentro da sociedade.
Essa transição é exigente, porque implica coragem individual e mudança cultural coletiva. Exige que a universidade não seja apenas transmissora de cultura, mas criadora de futuros. Exige que os orientadores vejam no empreendedorismo não uma ameaça à pesquisa, mas uma possibilidade de expansão. E exige que os alunos aprendam a valorizar tanto a profundidade da ciência quanto a ousadia de aplicar esse saber em problemas reais. A essência da universidade, como lembrava Gusdorf, é a de afirmar a humanidade para além das necessidades imediatas. Nesse sentido, o pesquisador que empreende não abandona sua vocação acadêmica; ele a complementa. É no entrelaçamento da pesquisa com a prática, do pensamento com a ação, que a universidade reencontra não apenas sua missão perdida, mas sua capacidade de se renovar.
Ainda bem que temos bons livros e canais como o Red Umbrella, que nos permitem aproximar desta "sorte" e abrir caminhos para o pensamento e a liberdade.
Ler "A Universidade em Questão" foi um presente do presente (risos), e desta leitura vieram dezenas de ações e ideias, baseadas na análise de consciência, além do compartilhamento de informações.
Um "livro presente" significa somar e transformar a vida de alguém, o espírito da universidade, tornando a pessoa protagonista do pensamento e abrindo portas para a autoanálise, a discussão e a aprendizagem. Um livro presente vale VIDA.
Beijos cheios de #moleculasvaliosas
Texto escrito em colaboração de Diana Finkler e Letícia Zanchet
