O espírito do nosso tempo
Elon Musk é, sem dúvida nenhuma, o empreendedor mais ousado e inovador de nossa época. E como não poderia deixar de ser, dada à sua personalidade impulsiva e seu gosto por correr riscos, um dos mais controversos também.
Nesta biografia de Walter Isaacson, publicada recentemente (setembro de 2023), temos a oportunidade de vislumbrar, em detalhes, toda a sua incrível trajetória até aqui. Em 95 capítulos, que vão desde a infância na África do Sul até o lançamento da sua mais ousada iniciativa, a Starship, podemos conhecer sua personalidade complexa, suas muitas realizações, suas maiores qualidades e seus piores defeitos.
Moldado por uma educação nada convencional, que o encorajava a enfrentar e vencer o medo desde pequeno, Musk cresceu com um gosto pelo risco e pelo perigo. Sua mente inquieta e criativa fazia-o consumir livros de ficção científica e enciclopédias de uma forma quase obsessiva, o que acabou desenvolvendo nele uma característica que o acompanhou pelo resto de sua vida adulta: uma paixão pelo conhecimento e pelo progresso tecnológico.
Suas preocupações com o futuro da humanidade, além de dar um sentido de missão para sua vida, o levaram a determinar, desde cedo, suas três principais áreas de interesse: internet, energia sustentável e viagens espaciais. Dono de uma natureza obsessiva compulsiva, onde vencer era o que mais importava, Musk começou a realizar seus sonhos nos anos de ouro da internet (por volta dos anos 2000). Milionário antes dos 30 anos, cofundador do PayPal, ele decidiu criar uma empresa de foguetes em 2001, a SpaceX. A ideia de colonizar outros planetas era parte de seu sonho de garantir a sobrevivência da civilização e da consciência humana.
A habilidade que possui de apresentar sua visão de mundo como uma mensagem messiânica possibilitou atrair pessoas tão obstinadas quanto ele para trabalhar em seus projetos, apesar de sua natureza extremamente controladora. Suas práticas gerenciais, que incluem fabricar a maior parte possível de componentes em suas indústrias, vão na contramão do que seus concorrentes praticam, mas fizeram com que os custos de seus produtos fossem reduzidos ao máximo e, desta forma, viabilizassem os riscos que assumia.
Seu senso de urgência maníaco se tornou um princípio operacional, onde cronogramas excessivamente ousados (alguns fisicamente impossíveis) são impostos de uma forma brutal. Isso se aplica tanto ao número de veículos que devem ser produzidos semanalmente, no caso da Tesla, como no prazo para lançamento de foguetes. E geralmente dá certo, mesmo levando, em muitos casos, a demissões sumárias e trabalhos incessantes por dias a fio. Tentar novas ideias e estar disposto a explodir coisas acabou se tornando um padrão a ser seguido por todos que trabalham com ele.
Diagnosticado com Asperger, Elon não compreende bem os sinais sociais e nem o impacto de suas palavras, e isso torna a convivência com ele um desafio difícil de ser superado, principalmente por aqueles que não conseguem atender o alto nível de eficiência exigido por ele. Sua regra sobre responsabilidade, que faz com que cada peça, processo e especificação venha atrelada a um nome, torna rápida a busca por culpados, expondo-os, muitas vezes, a um verdadeiro massacre verbal.
"Não é um produto que leva ao sucesso. É a capacidade de fazer o produto de maneira eficiente. Trata-se de um construir uma máquina que constrói máquinas."
Apesar de desajeitado no trato social, Musk sempre gostou de ir a festas cheias de celebridades e ficar até de madrugada. Seus muitos relacionamentos acabaram por confirmar uma característica de sua personalidade: ele nunca gosta de ficar sozinho. Ao ir do céu ao inferno em instantes, ele se tornou uma pessoa imprevisível e difícil de se relacionar, mas mesmo assim isso não evitou que tivesse muitos filhos e uma convivência até certo ponto saudável com suas ex-mulheres e namoradas.
Sua fixação pela eficiência é tão grande quanto sua ousadia pelo risco. A quase falência da Tesla e os múltiplos desastres na SpaceX são provas disso, mas ele nunca desiste e nunca recua. Seu ritmo de trabalho é frenético, e ele não espera menos de seus subordinados. Em suas fases mais estressantes, onde atingir determinado objetivo ou meta era questão de sobrevivência ou de superação de um problema sério de design ou fabricação, ele simplesmente dormia nos locais de trabalho supervisionando cada detalhe e cada atividade realizada. Seu conhecimento de engenharia e física o ajuda a ser respeitado por suas ideias e imposições, mas nem sempre elas fazem sentido sob um ponto de vista prático.
Defensor enérgico da liberdade, especialmente a de expressão, Musk se posicionou fortemente contra o rígido lockdown provocado pela pandemia do coronavírus, reforçando seu posicionamento político contra os democratas progressistas. Além disso, ele tem uma séria preocupação com a disseminação do vírus da mentalidade woke, que ele diz ser anticiência, antimérito e antihumano em geral. Segundo ele, a civilização jamais será multiplanetária se não combater esse tipo de mentalidade.
Apesar de sua inclinação mais à direita nos últimos anos, Musk se considera de centro moderado. E se observarmos seu estilo de vida, ele abarca mais valores libertários do que conservadores. De qualquer forma, por não compactuar com muitas das pautas progressistas e se posicionar fortemente contra elas publicamente, ele acabou atraindo para si a atenção de políticos de direita e a repulsa dos extremistas de esquerda.
Fã de videogames, principalmente os de estratégia, Musk gasta sua energia jogando durante horas, o que serve, segundo ele, para melhorar suas habilidades e desenvolver seu pensamento estratégico para os negócios. Mas essa paixão por jogos eletrônicos só reforça a percepção de que Musk mantém um certo espírito juvenil em tudo que realiza, o que o torna ainda mais fascinante se levarmos em consideração as conquistas que já obteve. Ele se diverte ao se arriscar.
Em 2022, suas empresas já apresentavam valores de mercado extraordinários: Tesla -1 trilhão de dólares; SpaceX - 100 bilhões de dólares; The Boring Company - 5,6 bilhões de dólares; e Neuralink - 1 bilhão de dólares. Mas ele não parou - períodos de calmaria são irritantes para ele. E foi quando sua aventura para comprar o Twitter começou. Preocupado com a direção em que a plataforma estava tomando, que era a de censurar quem estava na ponta errada do espectro político, ele partiu para uma aquisição hostil. Na visão dele, quanto mais liberdade de expressão, melhor para a democracia.
Enquanto isso, ele continuava trabalhando em outros projetos ousados e inovadores, como o lançamento da Starship e o robô Optimus da Tesla. Desafiar os limites e correr riscos que pouquíssimos ousariam correr sempre foi sua principal característica, e para desafiar suas equipes ele costumeiramente as faz pensar que estão numa startup prestes a ficar sem dinheiro. Aliado a um senso de urgência quase maníaco, isso realmente faz com que as coisas aconteçam.
"Acredito muito na ideia de que um pequeno número de pessoas excepcionais muito motivadas pode se sair melhor que um grande número de pessoas que são muito boas e moderamente motivadas".
Musk despreza pessoas bem-sucedidas e que gostam de tirar férias, mas ele sempre que pode escapa por alguns dias para algum lugar isolado e paradisíaco a fim de recarregar as baterias. Afinal, mesmo para uma pessoa como ele, algum descanso é obrigatório. Mas quanto se trata de seus subordinados, essa preocupação não parece ser compartilhada. Tanto a SpaceX quanto a Tesla são um sucesso porque ele pressionou as equipes para que improvisassem mais, fossem mais ágeis e trabalhassem incessantemente a fim de eliminar todos os obstáculos. Entretanto, apesar desse jeito workaholic ao extremo, Musk sempre procura dar um jeito de estar com seus filhos e com sua família. Quem o enxerga com um robô desalmado, pode estar enganado. Trabalho e vida pessoal para ele são uma coisa só.
Hoje, Elon Musk dirige seis empresas: Tesla, SpaceX e a unidade Starlink, X (ex-Twitter), The Boring Company, Neuralink e a recém-criada X.AI. Isso já é três vezes mais do que Steve Jobs no ápice de sua carreira (Apple e Pixar). Até a conclusão do livro, o primeiro lançamento da Starship tinha acabado numa explosão, mas esse é seu modus operandi. Ele não vai desistir até ser bem sucedido. Tanto suas conquistas quanto seus fracassos sempre foram épicos.
Walter Isaacson, ao final do livro, cita Shakespeare para dizer que todo herói tem falhas, algumas trágicas, algumas conquistadas, e aqueles que vemos como vilões podem ser figuras complexas. Mesmo as melhores pessoas são moldadas por suas falhas. Às vezes, grandes inovadores são homens com jeito de criança, que gostam de correr riscos e resistem ao peniquinho. Eles podem ser imprudentes, causar vergonha alheia e até mesmo ser tóxicos. Podem ser loucos também. Loucos o suficiente para achar que podem mudar o mundo. Musk parece um louco do bem.
O que podemos concluir dessa extensa biografia é que Elon Musk representa o melhor do espírito empreendedor de nossa época. Oriundo da geração X, ele soube aproveitar, assim como Bill Gates e Steve Jobs, o crescimento exponencial da internet e as oportunidades que surgiram a partir dela. Mas ele foi além. Seus sonhos para a humanidade podem parecer deslocados da realidade, uma mera fantasia, mas mesmo assim ele continua nos surpreendendo com o que consegue realizar e entregar. Claro que, para isso, ser bilionário ajuda, mas fica muito claro que ser rico para ele não é uma meta, e sim a consequência.
Hoje temos uma geração inteira mais preocupada em sentir do que em pensar, e Musk pode ser o último remanescente de um grupo de pessoas que realmente está agindo para alterar a direção que o futuro está tomando. Mas precisamos lembrar que o progresso tecnológico não pode salvar a humanidade de si mesma, apenas tornar a nossa vida diferente ou até melhor em muitos aspectos. A verdadeira transformação deve começar com a retomada de valores e virtudes esquecidos, aqueles que formaram a base da nossa civilização e que estão sendo substituídos por uma confusão de ideias que não vão nos levar a lugar algum, muito pelo contrário.
Podemos ir à Marte, construir robôs autônomos e continuar sonhando em salvar a humanidade, mas para isso é preciso muito mais do que capacidade de inovar e competência técnica acima da média. Musk sabe disso, mas pelo menos a parte que lhe cabe ele está fazendo, e muito bem.
Editora : Intrínseca; 1ª edição (12 setembro 2023); 656 páginas. Clique aqui para comprar.
Notas sobre o autor: Walter Isaacson é um dos mais proeminentes biógrafos do nosso tempo. Iniciou a carreira no jornalismo, foi editor da revista Time, presidente do conselho de administração e CEO da CNN. Atualmente é professor de história na Universidade de Tulane. É autor, entre outros, dos best-sellers Steve Jobs, Os inovadores e Elon Musk.
Assista o segundo teste de voo da Starhip:
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