top of page

Colonizando Marte (Parte 1/2) - Gustavo P. de Mello

Atualizado: 22 de ago. de 2023



Colonizando Marte: a expansão da humanidade

PLANETAS ROCHOSOS DO SISTEMA SOLAR

O planeta Marte nos fascina desde a antiguidade mais remota. Visível com uma intensa cor avermelhada, pode tornar-se, nas aproximações muito favoráveis, o planeta mais brilhante do céu, com exceção de Vênus. No Sistema Solar, juntamente com este último, Marte integra o grupo de planetas rochosos considerados semelhantes à Terra, ditos “terrestróides”. São mundos constituídos principalmente de material rochoso, com um núcleo metálico e algum material volátil na superfície. Vênus, Terra e Marte possuem atmosferas, e no caso da Terra, esse material volátil é complementado por oceanos de água líquida. Todas as formas de vida que conhecemos se desenvolvem nessa pequena “película” de material volátil que recobre a Terra. Nem Vênus nem Marte são capazes hoje em dia de abrigar água líquida em suas superfícies, mas no passado distante (estamos falando de bilhões de anos) esses mundos – assim como a Terra – provavelmente eram profundamente diferentes de como hoje os observamos.

Tanto Vênus quanto Marte, dentro do nosso conhecimento atual, poderiam ter abrigado oceanos de água líquida no passado distante. Um conceito fundamental que explica o interesse, tanto científico quanto prático, da humanidade sobre esses planetas é a chamada zona habitável. Consideramos um planeta habitável quando ele é capaz de manter água líquida, de modo mais ou menos permanente, pelo menos em alguns locais de sua superfície. Embora o fato de que um planeta esteja situado dentro da zona habitável não implique necessariamente que este abrigue vida, os dois fatos estão obviamente conectados – a Terra é o único planeta que conhecemos que abriga vida, e é também o único planeta onde observamos a existência de água líquida na superfície.


Por que Marte é claramente o planeta que identificamos como o mais similar à Terra? Qual é a origem desse fascínio que levou a humanidade a explorá-lo com sondas espaciais desde os anos 1960, tornando-o o planeta que melhor conhecemos depois da Terra? Por que ele ocupa um lugar tão especial em nosso imaginário? Por que temos uma identificação tão próxima com esse planeta, considerando-o como uma espécie de irmão menor da Terra, como um projeto que não deu certo, mas que poderia ter dado? E, por fim, o que sabemos de Vênus e Marte a respeito de sua possível habitabilidade?

Quando consideramos o nosso conhecimento atual, Vênus pode ter estado dentro da zona habitável no passado distante, na época da formação do Sistema Solar. O Sol, nessa época, tinha apenas 70% do brilho atual, e as condições superficiais em Vênus podem perfeitamente ter sido muito diferentes. Uma intensa investigação do planeta com sondas espaciais, contudo, não revelou (ainda) evidência de possíveis oceanos, ou mesmo qualquer sinal da possível presença de água, hoje ou no passado. Por sua vez, Marte possui abundantes evidências em sua superfície não apenas da presença de água líquida, mas em enorme quantidade. Tanto imagens feitas por sondas em órbita do planeta, quanto explorações in loco na superfície, mostram claramente que extensas partes do terreno de Marte já estiveram submersas. Vemos evidências claras da ação de rios; vemos crateras mostrando a morfologia de lagos, com canais de entrada e de escoamento; observamos a deposição de bacias sedimentares; revelam-se sinais inequívocos de erosão glacial, onde supostamente estiveram geleiras de grandes dimensões; e vemos deposições mineralógicas que só podem ser satisfatoriamente explicadas se ocorreram com a participação de água íquida. E até hoje em dia, de acordo com o cálculo de especialistas, Marte encontra-se tecnicamente dentro da zona habitável do Sistema Solar. As dificuldades dos modelos teóricos estão, na verdade, mais no passado do que no presente – o Sol primitivo possivelmente não era brilhante o suficiente para posicionar Marte dentro da zona habitável. Mas as evidências geológicas sugerem que de fato Marte já foi habitável, sendo o único corpo do Sistema Solar que compartilha com a Terra essa propriedade maravilhosa, a presença de água líquida, estável e em grande quantidade, em sua superfície. A história de como o planeta perdeu sua água e sua habitabilidade é um dos mais fascinantes temas da exploração do Sistema Solar, mas não tem ainda uma resposta satisfatória. Entretanto, sabemos sem sombra de dúvida que Marte já foi capaz de manter água líquida em sua superfície, e em grandes quantidades. É o único corpo do Sistema Solar, além da Terra, sobre o qual é possível afirmar isso.


FIGURA 1 - Bem menor e mais frio do que a Terra, ainda assim Marte (à direita) é o planeta cujas características superficiais mais se parecem com as de nosso planeta. Vênus (à esquerda), apesar de ter quase o mesmo tamanho que a Terra, está aprisionado em um efeito estufa descontrolado e é infernalmente quente.

Crédito da imagem: wikipédia, uso livre.


As impressões fugidias e construções fantasiosas de filósofos, poetas ou mesmo cientistas sobre o planeta vermelho, tais como eram populares no século XIX e até a metade do século passado, já não tem mais lugar no século XXI. Marte é um planeta completamente mapeado e profundamente estudado. Já existe disponível na internet, há vários anos, o Google Mars , aplicativo através do qual qualquer cidadão pode observar a superfície de Marte em nível de detalhe comparável ao que desfrutamos aqui na Terra. Enquanto escrevo essas linhas, operam em Marte oito missões orbitais e quatro sondas no solo. Conhecemos Marte quase tão bem quanto a Terra. Dentre todos os planetas e satélites do Sistema Solar, Marte possui as condições superficiais que mais se aproximam das terrestres. Isso não significa que Marte é o planeta fisicamente mais parecido com a Terra. Essa distinção recai sobre Vênus, que tem 82% da massa da Terra e 95% do seu diâmetro. Marte possui apenas 11% da massa da Terra e menos da metade do diâmetro. Entretanto, a temperatura superficial média de Marte é de -55ºC, comparada com +15ºC para a Terra. Vênus possui temperatura superficial média ao redor de +460ºC ! O nosso planeta “irmão” em tamanho está aprisionado em um efeito estufa descontrolado que provoca temperaturas infernalmente quentes. Aliás, as condições de Vênus são um grande alerta para a humanidade, pois esse é o futuro inevitável da Terra. Com a evolução do Sol, que se tornará paulatinamente mais luminoso, nosso planeta, no futuro, abandonará a zona habitável do Sistema Solar, e encontrará um destino semelhante ao de Vênus. E o fará muito antes de Marte, que está mais distante do Sol.


O FASCÍNIO DE MARTE

Marte, recebendo menos radiação solar do que a Terra, é um mundo muito mais frio. Mas a faixa de temperaturas de Marte, que vai de -120ºC nos invernos polares até +20ºC no equador (compare esses valores com -90ºC no inverno da Antártida e de +57ºC no Vale da Morte, EUA), está perfeitamente dentro daquela experimentada anualmente por muitos ecossistemas – inclusive cidades - terrestres. A cidade de Verkhoyansk, na Rússia, possui uma amplitude térmica que vai de -70ºC nos invernos mais rigorosos até mais de +40ºC no verão, uma diferença sazonal de 110 graus Celsius! Um valor não muito menor do que o verificado em Marte. Muitos biomas terrestres experimentam temperaturas sazonais de -60ºC ou menos, e a vida terrestre está claramente bem adaptada a suportar essas temperaturas todos os anos. Além disso, o ser humano se mostra extraordinariamente resiliente e flexível. Nossa civilização tecnológica, com todos os seus recursos, nos acostumou a modificar as condições ambientais a nosso gosto. Utilizamos aquecedores, condicionadores de ar, umidificadores e desumidificadores, toda uma parafernália da qual muitas vezes nem nos damos conta, mas sem a qual muitos de nós considerariam a vida impossível ou, no mínimo, muito mais difícil e desconfortável. Desse modo, as condições de Marte no que diz respeito às temperaturas superficiais estão dentro do intervalo compatível com a vida terrestre e nossa civilização, e não oferecem obstáculo à colonização humana. Não podemos dizer isso de nenhum outro local do Sistema Solar!


Marte simplesmente não é um planeta como outro qualquer. As semelhanças com a Terra são marcantes e impressionantes, principalmente na sua superfície. Os dois planetas, claramente, possuem vários aspectos em comum na sua evolução. Marte é também o único corpo do Sistema Solar onde se verificam muitos dos processos geomorfológicos e atmosféricos com os quais estamos acostumados na Terra.



FIGURA 2 - Marte fascina a humanidade há muitos séculos, desde o início das observações telescópicas no século XVII, pela sua óbvia semelhança superficial com a Terra. Esse fascínio sobreviveu à Era Espacial, apesar de inicialmente as primeiras sondas que visitaram o planeta terem mostrado que, sob suas condições atuais, a água líquida não pode existir em sua superfície. Crédito da imagem: NASA/ESA, telescópio espacial Hubble.


Em Marte, observamos os efeitos de erosão fluvial, glacial e eólica, além da presença de nuvens de vapor de água. Nenhum outro lugar do Sistema Solar se aproxima dessa semelhança. Marte possui calotas polares de gelo, como a Terra, e compostas principalmente por água congelada, como na Terra (em Marte, parte desse gelo é composto de dióxido de carbono sólido, que aqui na Terra chamamos de gelo seco). Observamos, portanto, água congelada na superfície de Marte, e existem muitas evidências da presença de grande quantidade de água congelada no solo, sob a forma de permafrost. Marte possui vulcões de grandes dimensões, embora todos pareçam estar inativos no momento e, assim como na Terra, a atividade vulcânica é um fator importante na constituição da crosta do planeta e na modelagem do seu terreno. Seu eixo de rotação possui quase a mesma inclinação que o eixo terrestre: um pouco mais de 25 graus, contra 23,5 graus para a Terra. Isso significa que as estações do ano têm a mesma intensidade em Marte do que em nosso planeta, embora, na média, elas tenham duração 90% maior. E, além disso, o período de rotação de Marte é de 24 horas e 36 minutos, praticamente idêntico ao da Terra, algo único em todo o Sistema Solar. Finalmente, conforme apontam todos os levantamentos geológicos, embasados por imagens orbitais e prospecção no solo, encontramos na superfície ou no subsolo de Marte todos os minerais e minérios necessários ao florescimento de uma civilização tecnológica. Água, energia, e recursos em abundância estão disponíveis na superfície, ou próximo dela, no nosso planeta vizinho. Marte é, por uma larga margem, o mais viável, interessante e atrativo corpo celeste, em todo o Sistema Solar, para a implantação da habitação humana. Entre centenas de planetas e satélites em nosso Sistema, nenhum outro mostra interesse comparável. Marte é único.


FIGURA 3 - Missões espaciais da NASA, ESA e vários outros países exploram Marte em cada vez mais detalhes, com robôs cada vez mais sofisticados. Na imagem, estruturas geológicas interpretadas como leitos de rios secos, muito antigos, espraiam-se próximo da cratera Huyghens, fotografadas pela sonda Mars Express (crédito da imagem: ESA).


O projeto de colonização de Marte não é novo. Tais ideias são regularmente exploradas na ficção científica há muitas décadas, e já não surpreendem a opinião pública. Planos para missões tripuladas a Marte remontam aos anos 1950, muito antes do primeiro satélite e do voo de Iuri Gagarin. Embora fosse claro que o grande objetivo da Corrida Espacial dos anos 1960, durante a Guerra Fria entre a antiga União Soviética e os Estados Unidos, fosse o pouso tripulado na Lua, os planos de ida à Marte sempre figuraram com destaque nas agências espaciais desses países. Após o grande triunfo norte-americano de 1969, com o pouso da Apollo 11 na Lua, a agenda espacial da humanidade pareceu desinflar-se quase que imediatamente. O que houve? O que foi feito dos objetivos ambiciosos dessa era heroica, quando tudo parecia possível? Estariam os interesses dos governos e agências espaciais limitados a uma competição mesquinha por prestígio geopolítico? O que foi feito do imenso senso de aventura e de exploração, de desbravamento e inovação tecnológica, que parecia motivar o discurso dos competidores durante a Corrida Espacial? Desde então, ouvimos apenas planos vagos e requentados (afinal de contas, os primeiros planos foram traçados há mais de 60 anos atrás) de que uma missão tripulada à Marte estaria logo no horizonte, e que o trabalho na Estação Espacial Internacional é um preparativo para missões longas no espaço profundo, e que um eventual retorno à Lua seria um treinamento e uma antecipação para a instalação de bases permanentes à Marte. Esse é um discurso antigo. Será que não existe nada de novo sob o Sol?


Clique abaixo para acessar a segunda parte do artigo:



bottom of page