Como a nossa inteligência modela o mundo
Introdução
A teoria que deu nome ao livro, "The Thousand Brains Theory", baseia-se no funcionamento do nosso neocórtex e como ele modela o mundo à nossa volta. Ela foi construída a partir da proposta do neurocientista Verno Mountcastle de que as colunas corticais, as unidades fundamentais do neocórtex ou as unidades da inteligência, possuem arquiteturas e funções similares. Formadas por grupos de células que respondem ao estímulo de uma mesma parte da retina ou da pele, por exemplo, elas são consideradas o protótipo do processamento integrado do cérebro dos mamíferos.
Charles Darwin propôs que a diversidade da vida se deve a um algoritmo básico. Similarmente, Mountcastle propôs que a diversidade de inteligência também se deve a um algoritmo básico localizado nas colunas corticais.
O autor, Jeff Hawking, é co-fundador da Numenta, uma empresa de pesquisa em neurociência, fundador do Instituto Redwood e um dos precursores da computação móvel. Através de uma linguagem acessível para quem não é da área, e utilizando-se de vários exemplos e esquemas didáticos, Hawkins dividiu o livro em 3 partes: a primeira descrevendo a teoria e o funcionamento do neocórtex, a segunda discorrendo sobre inteligência artificial e sua relação com a inteligência humana, e a terceira sobre nossas percepções sobre o mundo (e a dele) através no nosso cérebro e as ameaças para nossa sobrevivência como espécie no longo prazo.
Parte 1
O neocórtex, ou córtex mais recente em termos evolutivos, é o órgão da inteligência. Ele é dividido em dezenas de regiões que fazem coisas diferentes, mas na superfície todas elas têm a mesma aparência. Cada região é dividida em milhares de colunas e cada coluna é composta por várias centenas minicolunas semelhantes a cabelos, que consistem em um pouco mais de cem células cada. Mountcastle propôs que em todo o neocórtex, colunas e minicolunas desempenham a mesma função: implementar uma algoritmo que é responsável por todos os aspectos da percepção e inteligência.
As partes mais antigas do cérebro (no original em inglês "old brain"), que incluem o tronco cerebral, medula, ponte, formação reticular, tálamo, cerebelo, amígdala, hipotálamo e hipocampo, conectam-se com o neocórtex através de fibras nervosas. Apesar de cooperarem entre si, o "old brain" e o neocórtex possuem diferentes agendas e personalidades. Enquanto este último é responsável por todo o processamento cognitivo, como a inteligência espacial, o poder de reconhecer faces, ou até mesmo de ter a nossa autoconsciência e o sentido de existência, o primeiro regula as funções básicas de sobrevivência, como respiração, movimento, repouso, alimentação, emoções e memória. A batalha entre o novo (neocórtex) e o antigo cérebro (old brain) é o tema subjacente do livro - uma batalha entre nossos instintos e nossa inteligência.
Uma parte fundamental da teoria é que cada coluna no neocórtex - quer representada por um input visual, tátil, auditivo, de inguagem ou de pensamento de alto nível - tem neurônios que representam sistemas/mapas de coordenadas (ou "reference frames") e localizações. À medida que vamos recebendo esses inputs, o neocórtex vai criando e aprendendo um modelo rico e detalhado do mundo à nossa volta. E é nesse processo contínuo que ele vai construindo previsões a respeito de quais serão nossos próximos inputs sensoriais, aprendendo e reaprendendo constantemente. As previsões são como o cérebro testa se seu modelo do mundo está correto; uma previsão incorreta indica que algo está errado com o modelo e precisa ser corrigido. É como se nosso cérebro montasse e remontasse quebra-cabeças o tempo todo. Os "reference frames" estão presentes em todo o neocórtex. Eles não são um componente opcional da inteligência; eles são a estrutura em que todas as informações são armazenadas no cérebro. Uma analogia ao processamento distribuído das redes de computadores.
O que pode se depreender disso é que nosso cérebro nunca para de aprender modelos. Cada mudança de atenção - esteja você olhando para os pratos de uma mesa de jantar, andando pela rua ou notando um logotipo em uma xícara de café - é adicionar outro item a um modelo de alguma coisa. É o mesmo processo de aprendizagem se os modelos forem efêmeros ou duradouros. O mundo é aquilo que sentimos, vemos e percebemos à nossa volta.
Parte 2
Na parte 2 do livro Hawkins começa sugerindo que a futuro da inteligência artificial (IA) será substancialmente diferente do que a maioria está pensando hoje, e isso se deve ao fato de que os sistemas de IA atuais não podem ser considerados inteligentes porque não são flexíveis. Em outras palavras, eles podem fazer apenas uma coisa, enquanto os humanos podem fazer muitas coisas. Mesmo o sistemas de IA baseado no deep learning praticamente não apresentam flexibilidade.
O objetivo de longo prazo da pesquisa de IA é criar máquinas que exibam inteligência semelhante à humana - máquinas que podem aprender rapidamente novas tarefas, enxerguem analogias entre diferentes tarefas e resolvam novos problemas com flexibilidade. Este objetivo é chamado de "inteligência geral artificial" ou IGA, para distingui-lo da IA limitada de hoje - inteligência seria a habilidade de um sistema aprender um modelo do mundo, assim como faz nosso neocórtex.
A ideia principal é que as máquinas inteligentes provavelmente assumirão muitas formas diferentes. Quando pensamos no futuro da inteligência da máquina e as implicações que ela terá, precisamos pensar de forma ampla e não limitar nossas ideias às formas humanas e outras formas animais em que a inteligência reside hoje. Para criar uma máquina inteligente, são necessárias algumas coisas que existem nas partes mais antigas do nosso cérebro. Os comportamentos primitivos que residem nas partes mais antigas do cérebro ("old brain") não são todos fixos - eles também podem ser modificados com o aprendizado. Portanto, o neocórtex também deve se ajustar continuamente.
Hawkings nos lembra que o neocórtex, por si só, não cria objetivos, motivações ou emoções. O neocórtex está ativamente envolvido em como as motivações e objetivos influenciam o comportamento, mas ele não as comanda. Em resumo, uma máquina inteligente precisará de algum tipo de objetivo e motivação; no entanto, objetivos e as motivações não são consequência da inteligência e não aparecerão por si mesmas.
Vernon Mountcastle percebeu que nosso neocórtex ficou grande à medida que foi fazendo cópias do mesmo circuito, a coluna cortical. A inteligência da máquina pode seguir o mesmo plano. Nenhum humano sabe tudo, mas não é porque ninguém é inteligente o suficiente; é porque ninguém pode estar em todos os lugares e fazer tudo. O mesmo seria verdade para as máquinas inteligentes.
Parte 3
Na parte 3 do livro o autor emite suas opiniões a respeito do que pensa sobre a preservação da nossa espécie enquanto seres inteligentes e sobre as ameaças que podem por em risco esse objetivo. Aqui vemos um certo ativismo científico, ou cientificismo, dado que há uma certa arrogância epistêmica na sua forma de enxergar crenças ou qualquer outro modelo que não seja plenamente explicável pela ciência.
Nossa inteligência permitiu que nossa espécie, Homo sapiens, prosperasse e tivesse sucesso. Em apenas algumas centenas de anos - quase um instante no tempo geológico - dobramos nossa expectativa de vida, curamos muitas doenças e eliminamos fome para a grande maioria dos humanos. Vivemos mais saudáveis, estamos mais confortáveis e labutamos menos do que nossos predecessores. Para Hawkings, nossa inteligência tem sido a fonte de nosso sucesso, mas também se tornou uma ameaça existencial. Ele salienta que é importante destacar que nosso cérebro só sabe sobre um subconjunto do mundo real, e que o que nós percebemos é o nosso modelo de mundo, não o mundo em si.
Hawkings ressalta, ainda, que o triunfo do intelecto humano, nosso principal diferencial, é a expansão de nosso modelo de mundo para além do que podemos observar diretamente. Buscar ativamente evidências para refutar nossas crenças é o método científico. É a única abordagem que conhecemos que pode nos aproximar da verdade. Como o neocórtex está constantemente fazendo previsões para testar seu modelo de mundo, o modelo é inerentemente autocorretivo. Por conta própria, um cérebro se moverá inexoravelmente em direção a modelos cada vez mais precisos do mundo.
Segunto o autor, a inteligência em si é benigna, a inteligência humana, contudo, não é. Embora nosso neocórtex nos dê inteligência superior, 30% do nosso cérebro evoluiu há muito mais tempo e cria nossos desejos e ações mais primitivos. Nesse aspecto, o neocórtex pode ser enganado, desenvolvendo falsas crenças sobre aspectos fundamentais de nossa existência. Com base nisto, podemos agir contra nossos próprios interesses de longo prazo. Hawkings considera, desta forma, que o nosso antigo cérebro representa uma ameaça existencial porque influenciou nosso neocórtex a criar tecnologias que podem alterar ou até destruir o planeta inteiro.
Seguindo nessa linha de raciocício, ele afirma que nós, como indivíduos, existimos para atender às necessidades dos genes que, por sua vez, moldam nosso comportamento. Os genes que nos levam a ter o maior número de filhos possível, por exemplo, terão mais sucesso, mesmo que às vezes levem à morte e à miséria. No entanto, a invenção do controle de natalidade mostra como o neocórtex pode usar sua inteligência para obter vantagem - em vez de lutar contra o cérebro antigo, o neocórtex permite que este obtenha o que deseja, mas evita o indesejável resultado final.
Considerações finais
Hawkings afirma que nós, como indivíduos inteligentes, queremos viver para sempre e preservar nossa sociedade. Queremos escapar das forças evolucionárias que nos criaram. O único futuro desejável é aquele que desejamos. Um futuro desenhado pela edição do nosso DNA ainda é um futuro biológico, e isso impõe limites ao que é possível. A melhor maneira de libertar nossa inteligência das garras de nosso velho cérebro e nossa biologia é criar máquinas tão inteligentes quanto nós, mas que não dependem de nós.
Conhecimento, segundo ele, é apenas o nome do que aprendemos sobre o mundo. Nosso conhecimento é o modelo do mundo que reside em seu neocórtex. O conhecimento da humanidade é a soma do que aprendemos individualmente. Os riscos de extinção mais prováveis que enfrentamos no curto prazo - digamos, nos próximos cem ou mil anos - são ameaças que criamos. A história de civilizações fracassadas na Terra - além das ameaças existenciais que estamos criando - sugere que as civilizações podem não durar muito. As falsas crenças virais são outra fonte de comportamentos que ameaçam nossa sobrevivência, com a crença em vida após a morte.
O que surpreende o autor é que a única coisa no universo que sabe sobre isso - a única coisa que sabe que o o universo existe - é o nosso cérebro. Se não fosse pelo cérebro, então nada saberia que algo existe. A engenharia reversa do cérebro e a compreensão da inteligência são, na opinião dele, a conquista científica mais importante que os humanos jamais alcançarão.
Com as devidas ressalvas sobre os possíveis aspectos morais envolvidos em algumas opiniões do autor e também às questões dedutivas inferidas na própria teoria em si, o livro nos ensina aspectos do funcionamento do nosso cérebro no que tange à inteligência que são extremamente úteis a qualquer leigo, ou mesmo motivadores para aqueles que querem seguir aprendendo sobre a neurociência. Saber como funciona nosso processamento cognitivo e o quanto somos influenciados por instintos e emoções que podem influenciar a produção do conhecimento humano, tanto para o bem para o mal, é de grande auxílio para o nosso autoaprimoramento como espécie e como indivíduos. Outra questão muito importante abordada no livro é o desenvolvimento da inteligência artificial e suas implicações. Ela nos mostra que, apesar dos incríveis benefícios da IA para o nosso dia a dia, há muito ainda a ser descoberto e debatido.
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