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2024, o ano que pode não terminar

Atualizado: 27 de jan.



Eu não gosto de previsões apocalípticas, até porque raramente se concretizam no tempo e da forma como foram previstas. Nossa percepção dos acontecimentos que estão longe da nossa experiência real, muitas vezes escondem fatos que ignoramos ou simplesmente não temos como acessar. Dito isso, o título pode parecer exagerado e criado apenas para chamar atenção, uma espécie de clickbait para o leitor. Bem, não foi essa minha intenção, mas eu vou deixar para sua própria avaliação ao final.


Para quem acompanha minimamente os acontecimentos mundo afora e avalia suas repercussões, deve ter percebido que as coisas parecem estar fora do lugar. Quem poderia imaginar uma guerra no quintal da Europa em pleno século XXI que já dura 3 anos e que, para piorar, envolve diretamente uma potência nuclear? Ou um massacre de judeus que, pela dimensão e brutalidade, não acontecia desde o Holocausto? Bem, os experts em relações internacionais podem até ter especulado a possibilidade, mas certamente a maioria de nós sequer imaginaria.


Mas foram os recentes eventos no Oriente Médio, como os ataques do Irã a supostos grupos rivais no Paquistão, na Síria e no Iraque que dispararam um alerta nada confortável. Na noite da última segunda-feira (15/1), a Guarda Revolucionária Iraniana lançou 11 mísseis balísticos contra Erbil, a capital da região semiautônoma do Curdistão no Iraque. No mesmo dia, foram lançados mísseis na província de Idlib, no noroeste da Síria, e, no dia seguinte, o Irã também lançou mísseis contra uma região no sudoeste do Paquistão.


Muçulmanos xiitas, os iranianos são rivais dos mulçumanos sunitas, que representam a maioria dos muçulmanos (cerca de 85%). Os ataques, em tese, seriam direcionados a grupos sunitas inimigos do Irã e a aliados de Israel, no caso do Curdistão, mas isso pode ser apenas a ponta do iceberg ou uma tremenda digressão para outros objetivos ainda maiores. Independente dos motivos, entretanto, foi uma ação ousada e, de certa forma, inusitada. Apesar do Irã ser um foco de instabilidade para região desde a revolução islâmica de 1979, esse ataque coordenado a três países diferentes é um passo além do que eles estão acostumados a fazer, que é o apoio a grupos terroristas inimigos de seus inimigos. Ou seja, ações indiretas ao invés de ataques diretos.

Esses ataques, somados ao apoio do país aos rebeldes Houthis no Iêmen, que estão infernizando o transporte marítimo de carga que entra e sai do Mar Vermelho pelo golfo de Áden, e à invasão de Israel na Faixa de Gaza, demonstram que o Oriente Médio está mais instável do que nunca. Um conflito armado entre potências da região se torna um pesadelo cada vez mais plausível e, diferente da Guerra Irã-Iraque na década de 80, esse certamente não ficará confinado a dois países.


Na obra "O Choque das Civilizações e a Recomposição da Nova Ordem Mundial", um dos livros mais influentes até hoje sobre relações exteriores, o autor Samuel Huntington explica como a explosão populacional nos países muçulmanos e a ascensão econômica do Leste Asiático mudariam a política global. Esses acontecimentos, ao desafiarem o domínio ocidental, promoveriam oposição aos ideais supostamente "universais" e intensificariam o conflito intercivilizatório sobre questões como proliferação nuclear, imigração, direitos humanos e democracia. O aumento da população muçulmana levaria a muitas pequenas guerras em toda a Eurásia, e a ascensão da China poderia levar a uma guerra global de civilizações. Huntington propõe, como estratégia para o Ocidente preservar sua cultura única, a ênfase na necessidade das pessoas em todos os lugares aprenderem a coexistir em um mundo complexo, multipolar e multicivilizacional.


Ele estava certo em muitos aspectos, como já percebemos, só que ele não previu o enfraquecimento e a falta de liderança no Ocidente, que passaria a rejeitar os valores considerados universais que serviram de base para o seu desenvolvimento. Temas basais que sustentam a própria ideia de democracia e liberdade, como família, propriedade privada e estado de direito, passaram a ser relativizados por uma agenda progressista cada vez mais influente e desconectada da realidade.


Uma agenda que, por sinal, vem contribuindo para dividir profundamente a maior superpotência global, os Estados Unidos, ajudando a criar um vácuo de poder e de influência que vem sendo preenchido por regimes totalmente alheios aos valores ocidentais. Para piorar, a democracia americana, outrora exemplo para o resto do mundo, já não goza da mesma credibilidade de antes. Suspeitas de manipulação e de fraudes estão se tornando comuns a cada eleição.


As eleições americanas desse ano, inclusive, estão sendo vistas como cruciais para definir as ações que serão tomadas pelos países do Ocidente, principalmente os da Europa, para lidar com a crise no horizonte. Seja qual for o vencedor, entretanto, a divisão interna permanecerá, intensificando o extremismo de ambos os lados. Com tantos problemas internos, o país certamente encontrará dificuldades de se posicionar de forma equilibrada externamente. A Europa corre o sério risco de ter que lidar com a Rússia sozinha.


No leste asiático, como se já não bastassem as constantes ameaças de invasão de Taiwan pela China, o ditador norte-coreano, Kim Jon Un, declarou, no mesmo dia dos primeiros ataques do Irã, que está colocando um fim à política de busca de reconciliação com a Coreia do Sul, reforçando ainda mais sua retórica de guerra. Vale lembrar que a Guerra da Coreia nunca terminou de fato, mas Kim Jon Un nunca tinha ido tão longe, pelo menos até agora.


Num mundo onde os limites parecem cada vez mais turvos, as previsões, obviamente, não são as melhores. O Eurasia Group, consultoria americana líder global em análise de riscos externos para investidores e tomadores de decisão, considera 2024, politicamente, o Voldemort de todos anos, aquele que não deve ser nomeado. No seu relatório sobre os maiores riscos para esse ano (clique aqui para acessá-lo), ele cita os conflitos no Oriente Médio, as eleições americanas, a guerra na Ucrânia, a desaceleração econômica da China e um possível alinhamento da Coreia Norte com a Rússia e o Irã.


Além destes, vale destacar também a falta de governança da Inteligência Artificial como possível fator de risco para a desestabilização de governos e economias, e a disputa internacional por minerais críticos para o desenvolvimento econômico e a inovação, como lítio, cobalto, níquel e terras raras.


Entramos em 2024 com três guerras que certamente dominarão os assuntos mundiais ao longo do ano: Rússia vs. Ucrânia, agora no seu terceiro ano; Israel vs. Hamas, agora no seu terceiro mês; e os Estados Unidos contra eles próprios. Mas do jeito que as coisas estão caminhando de forma acelerada, podemos ter mais algumas pelo caminho. Os misseis lançados pelo Irã não são fatos isolados. Com tantos conflitos simultâneos, fica difícil acreditar que não estamos chegando a alguma espécie de grand finale. Seja lá como for, não há muito que possa ser feito para evitar, até porque o processo já está em curso.


Mesmo que você queira ignorar esses eventos, já estamos envolvidos de qualquer maneira. O Brasil não é uma bolha, e o governo brasileiro já escolheu um lado nessa história. Numa possível escalada dos conflitos, sairemos perdendo de uma forma ou de outra. O nível e a velocidade dessa perda é que ainda são uma incógnita.


2024 não será um ano qualquer. Num mundo sem lideranças e sem referenciais, o caos está apenas a um clique de distância.












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